Milagre no Vale de Ossos Secos


Se forem colocadas 100 pessoas em salas separadas e pedissem a elas que descrevessem o significado da palavra milagre, provavelmente o resultado seria 100 respostas diferentes. Independente disto, uma certeza se tem: milagre anda, corre e joga basquete.

A foto acima captura o rosto de um milagre. Shaun Livingston, armador do Washington Wizards, está na NBA graças a uma intervenção divina, superior ao alcance do ser humano. O garoto que entrou na associação sendo uma das principais promessas dos últimos tempos, sucumbiu por sofrer uma das piores lesões já registradas em vídeo e agora mostra traços que a sua recuperação foi bem sucedida. A esperança não trouxe confusão para ele.

Livingston fez parte do draft de 2004, uma classe com fantásticos cinco jogadores vindo do high school (ensino médio): Al Jefferson, Dwight Howard, Josh Smith, Sebastian Telfair e Livingston. Howard foi o primeiro a ser escolhido entre eles na posição número 1 (Orlando Magic). Livingston foi o segundo a ser escolhido da classe na posição número 4 (Los Angeles Clippers). Não foi uma escolha injusta, pois ele era considerado um armador excepcional, futura estrela da NBA.

Alto para jogar na posição (2,01m), Shaun possui uma qualidade intrínseca de controlar a bola como se suas mãos não estivessem tão longe do chão. A visão de quadra vem adicionar mais qualidade ao seu jogo, se tornando assim um exemplar raro. Numa fase do basquete quando se vê mais e mais jogadores híbridos, Livingston é um armador puro.

Na sua segunda temporada, ele experimentou o gosto dos playoffs com os Clippers. Com 20 anos de idade ele ganhava seu espaço a cada jogo, sendo o principal reserva do time. Sob a tutela de Sam Cassell, armador titular, Livingston aprendia um pouco mais sobre os segredos da posição, as malícias necessárias para se dar bem no profissional. Ele absorvia as instruções e em quadra os efeitos do ensino eram vistos, com o jovem amadurecendo cedo e chegando próximo de despontar.


Os fanáticos pela NBA sabem da sina que ronda os Clippers, uma maré (ou melhor, tsunami) de azar que atinge as potenciais estrelas do clube (vide Blake Griffin). No dia 26 de Fevereiro de 2007, num jogo em Los Angeles contra o Charlotte Bobcats, Livingston foi fazer uma simples bandeja. Quando ele finalizou a jogada, aconteceu a cena chocante: uma gravíssima torção no joelho. A imagem do lance é forte, dolorosa até pra quem assiste.

(Nota: apesar do vídeo da contusão de Livingston ser útil para melhor entendimento do texto, decidi não incorporá-lo porque não é recomendável. Quem, contudo, quiser ver, basta acessar o site YouTube. Lembre-se que é preciso ser muito forte para assistir. Não veja se possui alguma aversão à imagens de lesões)

Existem duas maneiras de informar o que aconteceu com a perna de Livingston: a médica e a popular. Numa linguagem medicinal, parecida com o que é visto nos livros didáticos, ele rompeu/quebrou praticamente todas as partes do joelho esquerdo: ligamento cruzado anterior (conhecido como ACL), ligamento cruzado posterior, menisco lateral, patela, ligamento colateral lateral e ligamento colateral medial. Numa linguagem popular: sem chance de uma recuperação.

Jogar basquete? Nada. Correr? Não. Andar? “Só se amputar a perna e colocar prótese” afirmavam os médicos na época – a lesão foi tão grave que chegou a este ponto. Sem exagerar, o joelho esquerdo de Livingston teve que ser reconstruído e surgiu “uma nova coisa” entre o fêmur e a tíbia. Podia chamar aquilo de qualquer nome, menos de “joelho”.

Existem casos, inclusive na NBA, de atletas que superam contusões das mais sérias e perigosas. Jonathan Bender, por exemplo, joga sem ter cartilagem nos dois joelhos (leia mais no artigo: 0-0-0). Agora, no caso de Livingston, é o total extremo: o joelho original desmontou, os médicos duvidavam se ele iria conseguir voltar a andar e ele pensava em jogar basquete... na NBA?!

Talvez seja isto o que chamam de fé.


Ele tinha a certeza daquilo que esperava e a prova do que não se enxergava. Um dos processos básicos de qualquer recuperação é esquecer o passado e focar no futuro, atitude que Shaun teve e lhe ajudou consideravelmente. Os críticos o rotulavam de “a promessa que não vingou”, mas ele não aceitava este atestado, visto que se assim fizesse, sua mente estaria no o que poderia ter acontecido se... Ele colocou em mente a missão de voltar, mostrar que é possível e que seu talento ainda existe.

Quando já estava andando e fazendo exercícios de fisioterapia, sua terapeuta comentou, em 2008, que ele até poderia arremessar umas bolas, porém não teria condições de fazer isto em alto nível e nem constantemente.

Pois bem, se milagre não se explica, pelo menos ele anda, corre e joga basquete.

Ao o ver atuando tão bem com a camisa do Washington, uma única palavra vem à boca: inacreditável. Depois de ser dispensado pelos Clippers e antes de chegar nos Wizards, passou pelo Miami Heat e pelo Oklahoma City Thunder – 22 jogos em duas temporadas, mesma quantidade que ele tem agora com o Washington desde sua chegada no dia 26 de Fevereiro deste ano.

Nestas 22 partidas, foram 14 como titular. Flip Saunders, treinador, acreditou em Livingston e apostou na habilidade do garoto (agora com 24 anos): “Ele veio porque acreditamos no seu potencial e na sua capacidade mental de jogar na posição” diz o técnico. A ida dele para Washington teve um lobby forte de um dos assistentes de Saunders: Sam Cassell. Ele conhece como poucos o talento de Livingston e hoje relembra o trabalho tutorial que fazia com Shaun em LA. Este vídeo abaixo é apenas um exemplo do carinho e atenção que Cassell, veterano de 16 temporadas, dedica ao seu armador, lhe ensinando truques para se dar bem contra os grandes na associação.



A “nova coisa” entre o fêmur e a tíbia não alterou o jeito calmo e suave de jogar de Shaun Livingston. Ele continua tendo uma velocidade peculiar, controle de bola excepcional e visão de jogo acima da média. Se algum dirigente estiver prestando atenção, o jogador receberá um novo contrato para jogar na próxima temporada, de preferência num clube de renome e que saiba reconhecer um talento natural.

Nem precisa acreditar em milagre, basta entregar a caneta a ele e pedir para assinar no canto esquerdo inferior do papel timbrado. Depois é só apertar a mão de Livingston e concretizar o negócio. Lembrando um detalhe: quando surgir numa conversa o assunto milagre, concorde com todos e diz que de fato não tem como explicar, mas mencione que é possível tocá-lo.

Ah! Também cite que ele anda, corre e joga basquete.



(GL)


© 1 Larry Busacca / WireImage
© 2 Christina House / LA Times
© 3 Eric Ogden / ESPN

Nenhum comentário:

Postar um comentário